A violência baseada no gênero é qualquer conduta, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. É o que se definiu em 1994, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção Belém do Pará – ratificada pelo Brasil, e, portanto, parte do Direito Brasileiro. Entretanto, é no âmbito familiar/doméstico que a violência de gênero apresenta-se com extrema relevância, desafiando a todos no sentido de encontrar alternativas para o seu enfrentamento.
A violência doméstica e familiar contra a mulher não pode ser vista como um ato isolado – mas como fenômeno histórico-social que emerge de uma complexa combinação de fatores, fazendo-se presente em todas as classes sociais; estudos demonstram que, preponderantemente, ocorre no contexto de relações domésticas, mas não se restringem ao lar, tem, todavia, nele sua gênese, podendo revelar-se através de várias molduras, expressando-se por diversas formas que não se excluem mutuamente (física, moral, psicológica, patrimonial e sexual).
Assim, a violência doméstica contra mulher não é um fato novo – as próprias normas jurídicas, durante milênios, legitimaram o poder marital de disciplinar ‘mulher, filhos e escravos’. O que é novo, entretanto, é a preocupação com o enfrentamento dessa violência contra as mulheres como violação dos direitos humanos, a sua criminalização e a judicialização, em novos paradigmas.
As estatísticas demonstram que a violência contra a mulher – diferentemente da que acomete o sexo masculino – ocorre preponderantemente no âmbito familiar e doméstico.
O período pós-guerra, especialmente a partir da década de 70 do século XX, foi marcado por uma série de tratados, resoluções e declarações internacionais que reconhecem os direitos das mulheres, em suas especificidades. Nesses vários instrumentos internacionais ratificados, comprometeu-se o Brasil a garantir esses direitos a todas as mulheres e buscar sua plena efetividade. A Constituição de 1988, artigo 226 § 8º, estabelece que o Estado deve criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares. E há onze anos, em agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, visando fomentar a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
A Lei Maria da Penha afasta a incidência da Lei 9.099/95 em caso de violência doméstica contra a mulher, reconhecendo ser um problema de múltiplas dimensões que não pode ser tratada apenas na esfera criminal. Com efeito, é uma lei que comporta três eixos principais no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres: proteção e assistência; prevenção e educação; combate e responsabilização.
A referida lei incrementou políticas públicas voltadas para o enfrentamento à violência contra a mulher, deu mais visibilidade ao fato e um olhar mais ampliado para o problema, não mais circunscrito aos grupos feministas e às Delegacias da Mulher, algumas existentes desde a década de 1980. Com efeito, assiste-se gradativamente a uma maior atenção à questão, nos três Poderes, no Ministério Público, na OAB e na sociedade civil de maneira geral. Com efeito, foram criadas as várias Coordenadorias (ou Secretarias) da Mulher, no âmbito municipal, estadual e federal da Administração Pública, multiplicando-se os serviços de atendimento à mulher e à família, inclusive com a criação de mais delegacias especializadas. No Poder Judiciário, foram instaladas as Coordenadorias da Mulher, em cada Tribunal de Justiça e varas especializadas para julgar os casos de violência contra a mulher; o CNJ aguça seu olhar sobre o fato e, sob a Coordenação da Ministra Carmen Lúcia, do STJ, já foram realizadas, várias ‘Semanas da Justiça pela Paz em Casa’, com mutirões para acelerar o julgamento de ações relativas à violência doméstica. O Congresso Nacional cria a Procuradoria da Mulher e Comissão Parlamentar Mista da Mulher; vários legislativos estaduais e municipais criam as Frentes Parlamentares em Defesa da Mulher, a exemplo da Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe e da Câmara Municipal de Aracaju. O Ministério Público criou Núcleos Especializados ou Centros de Apoio Operacional de Defesa da Mulher, estabelecendo atribuições de diversas Promotorias na Defesa dos Direitos da Mulher. A OAB e a Defensoria Pública instalaram núcleos ou Comissões de Defesa da Mulher. O IBDFAM criou a Comissão de Gênero e Violência Doméstica
Com isso a mulher adquire maior força de levar a violência doméstica a que era submetida ao conhecimento das autoridades e consegue ver os resultados. Com efeito, constata-se um maior número de inquéritos instaurados, nos dez anos da vigência da lei, como se pode exemplificar, com dados obtidos na Delegacia de Atendimento à Mulher de Aracaju, que atende mulheres de 18 a 59 anos. No ano 2006, foram registrados 1923 Boletins de Ocorrência, mas instaurados apenas 71 Inquéritos Policiais; no ano de 2007 – registrados 2006 BOs e 248 IPs, com crescimento contínuo, verificando-se que, em 2013 – 3065 BOs e 1283 IP, com leve decréscimo em 2015 – 2664 Bos e 1039 IPs. Em 2016 – 3117 Boletins de Ocorrência foram registrados, e instaurados 1001 Inquéritos Policiais e, em 2017, até 20 de julho, na Delegacia de Atendimento à Mulher de Aracaju, foram registrados 1639 Boletins de Ocorrência e instaurados 506 Inquéritos Policiais
Depreende-se desses números que os Boletins de Ocorrências policiais não cresceram na mesma proporção dos inquéritos policiais. É preciso lembrar que, sob a vigência da Lei 9099/95, a violência doméstica existia e fora banalizada, e, na maior parte, não eram inquéritos os procedimentos elaborados na delegacia, mas Termos de Ocorrências e, após, encaminhados aos Juizados Especiais Criminais, suscetíveis de transação pecuniária. Além disso, ocorria grande número de desistência das vítimas, na própria delegacia, face ao caráter de crime de menor potencial ofensivo atribuído à lesão corporal leve, sujeita à ação penal condicionada à representação, conforme dispusera o artigo 88 da Lei 9.099/95. Assim, o aumento de inquéritos policiais não significa, ipso factum, aumento da violência doméstica, mas sim sua maior visibilidade.
Destaque-se a previsão na lei Maria da Penha de políticas preventivas com ações que desconstruam mitos e estereótipos de gênero e que modifiquem os padrões sexistas, perpetuadores das desigualdades e da violência contra as mulheres. Prevê a lei ações educativas e culturais que disseminem atitudes igualitárias e valores éticos de irrestrito respeito à diversidade de gênero e de valorização da paz, com campanhas educativas, programas educacionais e inclusão nos currículos escolares em todos os níveis, de conteúdos sobre equidade de gênero e a capacitação dos profissionais.
No início de sua vigência encontrou resistência de muitos operadores de direito que a julgavam inconstitucional, especialmente por tratar diferentemente a violência contra a mulher e a violência contra o homem. Superada esta fase de contestação da lei pelo vício de inconstitucionalidade, remanesce a convicção de que essa lei era necessária. Com efeito, o STF colocou um ponto final, nessa discussão, com o importante julgamento, em fevereiro de 2012, da ADC19 e da ADI 4424.
Na ADC 19, o STF confirmou a constitucionalidade da Lei 11.340, por unanimidade, declarando a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha. Explicitou que a lei não ofende o princípio da isonomia ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, pois esta é “eminentemente vulnerável quando se tratam de constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado”. Os ministros consideraram que todos os artigos da lei — que vinham tendo interpretações divergentes tanto na primeira, como na segunda instância — estão de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural.
Na ADI 4424, ficou assentado que a ação penal com base na Lei Maria da Penha é PÚBLICA e INCONDICIONADA e não pode ser julgada por juizado especial, como se fosse de “menor potencialidade ofensiva”, mesmo em se tratando de lesão corporal leve, reconhecendo a sintonia da Lei 11.340/2006 com as normativas internacionais e com o dever de o Estado assegurar a assistência à família e criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações ( CF art. 226§ 8º); reconheceram os ministros do Supremo a incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais e a não razoabilidade de deixar a atuação estatal a critério da vítima, uma vez que a proteção à mulher poderia esvaziar-se, se verificada a agressão, pudesse ela, depois de acionada a autoridade policial, recuar e retratar-se em audiência especificamente designada com essa finalidade, fazendo-o antes de recebida a denúncia. Esses julgamentos no STF deram um novo reforço ao enfrentamento à violência contra a mulher.
Sem dúvida, a Lei 11.340/2006 trouxe maior visibilidade à violência doméstica e representa substancial avanço normativo no enfrentamento à violência contra a mulher. Entretanto, nenhuma norma isolada é suficiente para coibir a violência de gênero, que assume caráter de pandemia. Ainda persistem compreensões limitadas na conceituação “das violências”: que tipos de comportamentos cada um dos parceiros nomeia como “violência”? O que os “outros” entendem como “violência”? Qual o seu limite em uma relação familiar?
É urgente desconstruir mitos e estereótipos que ainda permeiam a nossa sociedade, inclusive entre os operadores de direito, gerando distorções, silêncios e preconceitos. Vale observar que negligências e omissões de pessoas ou de instituições, muitas vezes, são justificadas com base nesses mitos. Ressalte-se que ainda está muito presente entre nós, a LEGITIMAÇÃO da violência de gênero que é atribuída ao comportamento provocativo e sedutor da mulher, quando o foco deveria ser o crime.
As mudanças de posturas quanto aos direitos humanos das mulheres não são consequência automática da sociedade democrática: indispensável um esforço conjunto da família, da sociedade e do poder público – trabalho em rede efetivamente. Sem dúvida, a violência contra a mulher não é apenas um acontecimento da vida privada, pois em briga de marido e mulher, o Estado precisa meter a colher!
Adélia Moreira Pessoa
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da OAB/SE