Em junho de 2015, no Rio de Janeiro, uma menina de 11 anos foi apedrejada na cabeça após sair de um terreiro de Candomblé. O caso, no entanto, não é isolado. Em todo o país, ainda que a Constituição Federal estabeleça como invioláveis as liberdades de consciência e de crença, o preconceito, o racismo e a intolerância religiosa ferem e matam milhões de pessoas.
Em uma conversa com estudantes do Estado, a presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da Ordem dos Advogados do Brasil, em Sergipe, Kellen Muniz, relembrou nesta sexta-feira, 18, o episódio e reafirmou a indispensabilidade de respeitar as diferenças ou crenças de terceiros. “O respeito não é só para quem é branco, cristão ou heterossexual. O respeito é para todos”.
“Os dados são alarmantes. De 2014 a 2016, as denúncias de intolerância religiosa mais que duplicaram. Diariamente, são vários os terreiros invadidos, queimados ou apedrejados e são várias as pessoas que são mortas”, disse. A dois dias do Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, Kellen asseverou a importância do respeito diário ao outro.
Durante o debate, após a exibição do curta metragem “Òrun Àiyé: a criação do mundo”, que mostra a jornada de Oxalá e outras divindades na missão de criar o universo, a presidente da Comissão afirmou ainda a necessidade de efetivar a Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas.
O curta, obra das cineastas, Jamile Coelho e Cintia Maria, recebeu o prêmio de melhor filme no Festival de Cinema Baiano de 2016. Para Kellen, o trabalho é uma manifestação vital da beleza das religiões afro. “Um curta como esse mostra que o candomblé é muito distinto daquilo que escutamos em discursos comuns. Para mim, a desmistificação é o grande mérito da obra”.
Realizado pela seccional sergipana da OAB, o evento, que promoveu o debate e a exibição do curta em duas sessões, uma exclusiva a estudantes da rede pública e outra aberta ao público, também contou com as apresentações do Grupo Nagô do São Brás e dos Índios Kariri Xocó.
Em entrevista à assessoria de comunicação da OAB/SE, Jamile Coelho e Cintia Maria afirmaram que, ainda que haja o combate à intolerância religiosa e ao racismo, são extremamente necessárias também a produção de mais materiais didáticos e a efetivação da Lei 10.639/03.
Confira a entrevista:
ASCOM – Cintia, você considera que o curta é uma contribuição para a desmistificação das religiões afro?
Cintia – O Òrun Àiyé é mais uma ferramenta de combate ao racismo e à intolerância religiosa. Às vezes, a gente até fala em racismo religioso, que é muito grande com religiões de matrizes africanas. Os estereótipos e a mistificação dessas religiões fazem com que exista muito preconceito, então a partir do momento em que um público tem acesso a um filme que mostra de forma lúdica esse universo, ele acaba desmistificando muita coisa.
ASCOM – Nesse evento, a primeira sessão do curta foi realizada para estudantes, sendo eles crianças e adolescentes. Como isso afeta na realidade da sociedade?
Cintia – Com as exibições do curta, a gente percebe que, muitas vezes, as crianças, que são ou não do candomblé, começam a pensar. Órun provoca reflexão e, levando em conta que as crianças acabam tendo menos contato com as questões do preconceito, se torna até mais fácil trabalhar tais pontos. Uma coisa que a gente tem vivenciado durante várias exibições do curta é que, quando é tocado, nos créditos do filme, “Batidão do Orixá”, música de Carlinhos Brown, as crianças começam a dançar. É emocionante. O curta, por trabalhar o lúdico, acaba aproximando muito mais a criança desse universo do que a militância da fala, do discurso – que às vezes não consegue alcançar esse espaço.
ASCOM – O curta ganhou diversos prêmios, inclusive o de melhor filme no Festival da Bahia de 2016. Isso demonstra que, além de ser uma obra excepcional, a realidade está mudando?
Jamile – Pelo contrário. Vivemos um momento de intolerância muito grande. Os prêmios são um reconhecimento, mas que ainda é incipiente diante dos anos de racismo e de intolerância religiosa. O combate a esse processo é importante, mas, ao mesmo tempo, é necessário produzir mais material didático e fazer cumprir a Lei 10.639, que, infelizmente, foi revogada recentemente. Mas nós não podemos parar, nós temos que continuar criando mecanismos de representatividade, principalmente para as crianças. Quando a gente forma jovens mais conscientes, forma adultos menos intolerantes e mais respeitosos com as religiões.
ASCOM – Jamile, você considera que Órun pode expandir o Dia da Consciência Negra?
Jamilie – Acredito que, na dimensão simbólica, o Órun contribui para o combate à intolerância, mas nós ainda temos muito a fazer. Nós, negros, temos que ocupar esses espaços de produção, não apenas de protagonismo. Durante muito tempo, a cultura negra foi utilizada para fazer valer as afirmações dos brancos, até no cinema negro baiano. A gente vê a utilização do candomblé, mas não vê a produção de conteúdo feito por cineastas negros. O momento agora faz com que a gente tenha essa produção de conteúdo, nossa. O dia 20 é uma data que marca {a conscientização}, mas que não pode ficar apenas em novembro. Precisamos travar lutas diárias para que o racismo se torne o que é, algo mínimo. A gente tem que fazer com que isso seja compreendido.